Livro escrito por Márcio Paschoal foi
lançado em outubro de 2016
Há
um ano, Rogéria, nascida Astolfo Barroso Pinto, repassou sua trajetória na
biografia "Rogéria — Uma mulher e mais um pouco" (Sextante), assinada
pelo jornalista Márcio Paschoal. A atriz e cantora morreu na noite dessa segunda-feira, aos 74 anos.
Leia trechos:
As reinações de Tofinho
Astolfinho
não gostava de brincar de bonecas (na verdade, tinha pavor delas), mas já se
notavam nele alguns trejeitos femininos. Descia as escadas puxando um pano,
como se fosse um vestido longo. Alguns comentários de que o filho parecia uma
menininha não abalariam nem modificariam o comportamento de sua mãe.
Com
espírito de liderança, Astolfinho logo se tornou chefe da sua turma de amigos.
Falante e carismático, comandava o grupo que se aventurava pela vizinhança,
descobrindo novidades. Havia uma ponte nas proximidades, e os meninos iam lá
para pegar rã. Tofinho deu com uma cobra-d’água e ficou em pânico, histérico.
Os meninos estranharam, mas ninguém se atrevia a zombar dele. Tinha faniquitos,
mas era bom de braço. Todo mundo já desconfiava que ele era meio viadinho, mas
ninguém falava nada. Pelo menos, na sua frente.
Adolescência
A
cada dia aumentava nele a vontade de se vestir de mulher. Seria uma forma de se
expressar, relacionada a roupas, sapatos, maquiagem, adereços e acessórios,
enfim, com a caracterização feminina. Já se sentia meio mulher, e era como se,
ao se vestir assim, acalmasse uma angústia com a qual ele mesmo não conseguia
atinar. Era Carnaval, e Astolfinho, então com 14 anos, viu ali uma oportunidade
única: colocou um maiô Catalina preto, uma saia amarela e um chapeuzinho para
disfarçar o cabelo curto. Não se maquiou nem pôs peruca. Era o suficiente.
Todos que passavam por ele mexiam “Que lindinha!”, “Vai aonde, gracinha?”.
Astolfinho estava adorando. O azar foi sua tia Neusa o flagrar passando e logo
contar a Eloah. Resultado: uma bronca daquelas e, como castigo, o fim do
Carnaval para ele. Na realidade, a bronca da mãe não era propriamente por ele
se fantasiar daquela maneira, mas sim por deixar-se ser visto.
O padrasto
Astolfo
vivia a postura mais neutra dos travestis. Não precisava sobreviverda venda de
sexo, não se intoxicava de drogas e álcool, não deformava o corpo com injeções
de silicone industrial ou óleo Nujol, não passava pelas agruras que eles passavam
na tênue linha que separava o normal e o aceito da marginalidade. Astolfo era
gay e adorava fantasiar-se de mulher, mas não praticava o estilo travesti de
vida. Também se sentia feliz como homem. Especialistas em sexualidade entendem
que os travestis, em sua grande maioria, são biologicamente identificados com o
seu sexo de nascimento. O padrão comportamental é sentirem-se, ao mesmo tempo,
como homens e mulheres, não cogitarem mudar o sexo biológico e terem,
geralmente, atração por pessoas do mesmo sexo.
A transformação
Com
os hormônios, cabelos louros, depilada e magra, unhas longas e quadradas (dica
dos tempos de vedete com Carmen Verônica), só lhe faltava uma correção no
nariz. A cirurgia de um dia foi realizada numa clínica no 6ème arrondissement.
Pronto! O encontro de Astolfo com seu lado mulher estava terminado. Agora
Rogéria passaria a incorporar o lado feminino em seu cotidiano parisiense 24
horas por dia. O teste final aconteceria no metrô de Paris, entre as estações
de Pigalle e Montparnasse, na companhia da transformista Dany Dan e da
transexual Capucine. “Vamos ver se você passa por mulher, vagabunda, bicha ou
homem”, disseram. Rogéria, de rabo de cavalo, vestido simples e um salto não
muito alto, recebeu alguns olhares de cobiça, mas ninguém riu nem debochou
dela. A maioria das pessoas sequer tomou conhecimento. Rogériahavia passado no
teste, com louvor. Estava pronta. Overedicto foi de Dany: “Tu es prêt à voler!”
Você está pronta para voar.
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Fonte: O Globo