Distopias são frequentes na literatura e
no cinema. O sucesso de Jogos Vorazes, de Suzanne Collins,
e, antes, de investidas tão díspares (e bem superiores) como as de Aldous
Huxley (Admirável Mundo Novo)
e George Orwell (1984), se dá
porque vivemos em um status quo mais ou menos similar. Nessa longa tradição
distópico-literária,Battle Royale deve ser colocado em lugar de
destaque. Violentíssimo e controverso, o best-seller assinado por Koushun
Takami ganha, enfim, uma edição brasileira.
A história se passa em uma realidade
alternativa. Estamos em 1997, em um Estado totalitário conhecido como República
da Grande Ásia Oriental. Descrito como “um regime fascista bem-sucedido”, um
“tipo peculiar de socialismo estatal, cujo ápice é o detentor do poder máximo
denominado Supremo Líder”, o lugar faria Magda Goebbels chorar de emoção.
Dentre as inúmeras ações governamentais opressivas, está “o pior jogo de dança
das cadeiras de toda a história”, o Programa: uma simulação de batalha
“instituída por razões de segurança e conduzida pelas Forças Especiais de
Defesa”, onde “alunos do nono ano de escolas de ensino fundamental são
selecionados aleatoriamente” e, claro, “forçados a lutar entre si até que reste
apenas um sobrevivente”. Ao sobrevivente, o “vencedor”, será “assegurada uma
pensão vitalícia e um cartão autografado pelo Supremo Líder”.
Lançado no Japão em 1999, Battle Royale
teve duas adaptações para o cinema e também chegou aos mangás, em série
roteirizada pelo próprio Takami. As semelhanças com Jogos Vorazes são claras,
embora Collins tenha afirmado que sequer ouvira falar do romance japonês até
finalizar o seu. No entanto, as diferenças talvez sejam mais significativas.
Cito duas: o Programa não é televisionado; os “jogadores” não são estranhos entre
si, mas colegas de sala, namorados, companheiros, pessoas que se conhecem há
tempos. Ademais, Battle Royale comporta uma brutalidade que o afasta ainda mais
da trilogia de Collins, comparativamente menos gráfica nesse quesito.
Nas quase setecentas páginas do livro,
Takami dedica bastante tempo à maior parte dos personagens, explicando
motivações, explicitando melhor e aos poucos determinadas circunstâncias e
jogando com os diversos pontos de vista e as expectativas do leitor. Por mais
que sofra de um certo didatismo (o psicologismo nem sempre funciona) e de um
lirismo meio desajeitado nas cenas mais intimistas, é inegável o domínio do
autor quanto à estrutura traçada, à cadeia de acontecimentos e à escalada
aterradora de violência.
Entre os “jogadores”, há o trio
protagonista (Shuya, Noriko e Shogo), um antagonista implacável (Kazuo) e uma
vilã (Mitsuko) cuja complexidade talvez seja a melhor ou a mais tragicamente
construída dentre os personagens. A história de Mitsuko, revelada primeiro como
mentira e depois como verdade, guarda detalhes de uma sordidez insuportável e é
um exemplo, pela forma com irrompe, do domínio narrativo de Takami: pela boca
dela, é uma farsa; pela voz do narrador, não; e, depois, pensando
retrospectivamente, pela boca dela é uma verdade excruciante, verbalizada em
meio a uma farsa de que ela lança mão para sobreviver no Programa.
Em Battle Royale, acima de tudo, há
uma espécie de trânsito entre diversas violências: do Estado como um todo; do
Programa, cuja finalidade permanece obscura (“Invencionice de gente insana”,
diz um personagem. “Como o país inteiro é absurdo, devemos considerar isso
normal.”); e o modo como a violência escolar, cotidiana, de certo modo ecoa,
milhões de graus acima, na brutalidade do “jogo”. Ao final, Takami opta por dar
outro impulso à roda, criando um desfecho que reitera o trânsito citado e a
força da distopia criada.