Um
clichê crítico reza que não se pode comparar o filme ao livro no qual se
inspira. 100 Filmes - Da Literatura para o Cinema (Editora Best Seller), de
Henri Mitterand (organização), vai contra o dogma. Toma uma centena de filmes
famosos (uns mais que outros, é verdade) e reflete sobre eles na relação aos
romances dos quais foram tirados. Trata-se de trabalho intelectual
interessantíssimo e que principia por uma “apresentação” do próprio Mitterand,
um texto com valor de ensaio e pensamento crítico. A França - e o livro é
francês - alimenta uma antiga meditação a respeito. Basta lembrar que o
influente crítico André Bazin escreveu um artigo chamado Por Um Cinema Impuro,
defendendo as adaptações literárias. Já seu discípulo, François Truffaut,
escreveu um texto de grande repercussão, e virulência, contra as adaptações
literárias chamado Uma Certa Tendência do Cinema Francês.
Polêmicas
à parte, o interesse maior do livro está nas análises dos filmes escolhidos e
suas relações com as obras literárias de que descendem. Os verbetes seguem
sempre o mesmo formato. Título, uma sinopse, ficha técnica, as outras versões
(se for o caso) e, no corpo do texto, uma análise em geral bastante acurada.
Por fim, um pequeno box com “pistas pedagógicas” e uma bibliografia. Este
penúltimo item indica que o livro aspira ao debate em escolas secundárias,
talvez universidades e escolas de cinema. O autor é designado pelas iniciais.
Por exemplo, no verbete
sobre O Idiota, de Akira Kurosawa, o leitor é, em primeiro lugar, informado de
que o romance de Dostoievski foi publicado em folhetim entre 1868 e 1869 na
revista O Mensageiro Russo, sendo depois editado em dois volumes, em 1874. O
texto comenta a decisão de transpor a ação, do século 19, como no romance, para
a fase imediatamente posterior à 2.ª Guerra.
Kurosawa argumenta que
não havia equivalente no Japão da São Petersburgo do século 19, mas também lhe
era útil deslocar a ação para o traumático pós-guerra no Japão. O texto lembra
que alguns episódios do personagem (o príncipe Michkin, no romance, Kameda, no
filme), como o fuzilamento simulado e a epilepsia, remetem à própria biografia
do escritor russo. Por fim, as pistas pedagógicas trazem o foco de discussão
possível para temas como o triângulo amoroso, a representação da santidade na
tela, a imagem da mulher fatal, os traumas de guerra e a neve como elemento de
dramaturgia. Cita ainda filmes afins, em relação a este último quesito: Nanuk,
Louca Obsessão, Fargo, Tempestade de Gelo, Insônia. Dramas na neve, todos.
O livro contém verbetes
de filmes de antologias como Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, inspirado
em O Coração das Trevas, de Joseph Conrad; Barry Lyndon, de Stanley Kubrick,
tirado de As Memórias de Barry Lyndon, de William Thackeray, ou Doutor Jivago,
versão de David Lean para o longo romance de Boris Pasternak. Há também filmes
(e livros) menos conhecidos, ao menos no Brasil, como Le Mystère de la Chambre
Jaune, dirigido por Bruno Podalydès, de um romance homônimo de Gaston Leroux.
Ou Os Fantasmas do Chapeleiro, obra menos evidente de Claude Chabrol, versão da
novela de mesmo título de Georges Simenon. Mas, de modo geral, o livro contempla
filmes mais conhecidos e acessíveis ao público em diversos suportes.
Algumas obras - em
geral clássicas, mas nem sempre - prestaram-se a várias versões para o cinema.
A comparação entre elas nos permite avaliar os problemas da adaptação de uma
linguagem para outra. Por exemplo, o romance de Pierre Louÿs, La Femme et le
Pantin, de 1898, deu origem a três filmes - Mulher Satânica (The Devil Is a
Woman, EUA, 1935), de Josef Von Sternberg, La Femme et le Pantin (França,
1959), de Julien Duvivier, até se cristalizar numa das obras-primas de Luis
Buñuel sob o título de Esse Obscuro Objeto do Desejo (França, 1977). A versão
americana tinha John Dos Passos como roteirista. A francesa, Brigitte Bardot
como a femme fatale que atormenta o personagem masculino mais velho. Mas foi
Buñuel quem retratou de modo radical a dubiedade da mulher em relação a seu
amante (Fernando Rey), fazendo-a ser interpretada por duas atrizes diferentes,
Carole Bouquet e Angela Molina.
Outro clássico
superadaptado é Madame Bovary, de Gustave Flaubert, publicado em 1857. A
adúltera de província foi vivida por Valentine Tessier sob direção de Jean
Renoir (França, 1934); Jennifer Jones com Vincente Minelli (EUA, 1950); e
Isabelle Huppert, sob Claude Chabrol (França, 1991). Os três filmes adotam o
título do romance, e quem não compreenderia isso, já que muitas vezes as
versões para cinema buscam se valer do prestígio do livro? O autor do verbete,
Philippe Leclercq, considera melhor a versão de Chabrol, mais “fiel”.
Minelli teve de usar
luvas de pelica, pois o tema “adultério” ainda era considerado delicado na
América dos anos 1950. Renoir foi prejudicado pela imposição de uma atriz de 42
anos e dona de estilo de interpretação teatral.
Há
diretores que buscam a máxima fidelidade ao espírito do texto, outros que
inventam, e outros, ainda, que se aproveitam das lacunas para criar livremente.
É o caso de Federico Fellini com seu Satyricon. O texto latino conta as
aventuras de dois malandros, Ascilto (Hiram Keller) e Encolpio (Martin Potter),
em episódios justapostos, como numa novela picaresca. Ambos disputam o efebo
Giton, participam do banquete de Trimalquião, são presos, mandados às galés e
vendidos como escravos. Encolpio perde sua virilidade e a recupera pelo
intermédio da feiticeira Enoteia, enquanto Ascilto morre em combate. Por fim,
Encolpio parte rumo ao desconhecido e a narrativa se fecha (ou se abre?) com
uma frase interrompida e uma ilha vislumbrada ao longe, ao som da música
inventada por Nino Rota com temas africanos. Como se sabe, da narrativa de
Petrônio, escrita entre 62-64 d.C., sobraram apenas fragmentos. O resto é
invenção. Fellini resume esse fato fazendo com que os rostos dos personagens,
cujas aventuras acompanhamos ao longo de 138 minutos, apareçam como afrescos de
Pompeia em ruínas. É gênio ou não? As informações são do jornal O
Estado de S. Paulo.
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