"O homem chama-se
artur paz semedo e trabalha há quase vinte anos nos serviços de faturação de
armamento ligeiro e munições de uma histórica fábrica de armamento conhecida
pela razão social de produções belona s.a., nome que, convém aclarar, pois já
são pouquíssimas as pessoas que se interessam por estes saberes inúteis, era o
da deusa romana da guerra. Nada mais apropriado, reconheça-se. Outras fábricas,
mastodônticos impérios industriais armamentistas de peso mundial, se chamarão
krupp ou thyssen, mas esta produções belona s.a. goza de um prestígio único,
esse que lhe advém da antiguidade, baste dizer-se que, na opinião abalizada de
alguns peritos na matéria, certos petrechos militares romanos que encontramos
em museus, escudos, couraças, capacetes, pontas de lanças e gládios, tiveram a
sua origem numa modesta forja do trastevere que, segundo foi voz corrente na
época, havia sido estabelecida em roma pela mesmíssima deusa. Ainda não há
muito tempo, um artigo publicado numa revista de arqueologia militar ia ao
ponto de defender que alguns recém-descobertos restos de uma funda balear
provinham dessa mítica forja, tese que logo seria rebatida por outras
autoridades científicas que alegaram que, em tão remotos tempos, a temível arma
de arremesso a que se deu o nome de funda balear ou catapulta ainda não havia sido
inventada. A quem isso possa interessar, este artur paz semedo não é nem
solteiro, nem casado, nem divorciado, nem viúvo, está simplesmente separado da
mulher, não porque ele assim o tivesse querido, mas por decisão dela, que,
sendo militante pacifista convicta, acabou por não suportar mais tempo ver-se
ligada pelos laços da obrigada convivência doméstica e do dever conjugal a um
faturador de uma empresa produtora de armas. Questão de coerência,
simplesmente, tinha explicado ela então. A mesma coerência que já a havia
levado a mudar de nome, pois, tendo sido batizada como berta, que era o nome da
avó materna, passou a chamar-se oficialmente felícia para não ter de carregar
toda a vida com a alusão direta ao canhão ferroviário alemão que ficou célebre na
primeira guerra mundial por bombardear paris de uma distância de cento e vinte
quilómetros. Voltando a artur paz semedo, há que dizer que o grande sonho da
sua vida profissional é vir a ser nomeado responsável pela faturação de uma das
secções de armas pesadas em vez da miuçalha das munições para material ligeiro
que tem sido, até agora, a sua quase exclusiva área de trabalho. Os efeitos
psicológicos desta entranhada e não satisfeita ambição intensificam-se até à
ansiedade nas ocasiões em que a administração da fábrica apresenta novos
modelos e leva os empregados a visitar o campo de provas, herança de uma época
em que o alcance das armas era muito menor e agora impraticável para qualquer
exercício de tiro.
Contemplar aquelas reluzentes peças de artilharia de variados calibres, aqueles canhões antiaéreos, aquelas metralhadoras pesadas, aqueles morteiros de goela aberta para o céu, aqueles torpedos, aquelas cargas de profundidade, aquelas lançadeiras de mísseis do tipo órgão de estaline, era o maior prazer que a vida lhe podia oferecer. Notava-se a ausência de tanques no catálogo da fábrica, mas era já público que se estava preparando a entrada de produções belona s.a. no mercado respectivo com um modelo inspirado no merkava do exército de israel. Não podiam ter escolhido melhor, que o digam os palestinos. Tantas e tão fortes emoções quase faziam perder o conhecimento ao nosso homem.
À beira do delíquio, pelo menos assim o
cria ele, balbuciava, Água, por favor, deem-me água, e a água sempre aparecia,
pois os colegas já iam de sobreaviso e imediatamente lhe acudiam. Aquilo era
mais uma questão de nervos que outra coisa, artur paz semedo nunca chegou a
desfalecer por completo. Como se está vendo, o sujeito em questão é um
interessante exemplo das contradições entre o querer e o poder. Amante
apaixonado das armas de fogo, jamais disparou um tiro, não é sequer caçador de
fim de semana, e o exército, perante as suas evidentes carências físicas, não o
quis nas fileiras. Se não trabalhasse na fábrica de armamento, o mais certo é
que ainda hoje estivesse a viver, sem outras aspirações, com a sua pacifista
felícia."
(Trecho de "Alabardas, alabardas,
espingardas, espingardas" [Companhia das Letras])
Fonte: O Globo
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