Contratada para passar uma noite com um
cliente desconhecido, uma garota de programa embarca em uma estranha viagem
entre o real e o absurdo. Sem saber para onde está indo, atravessa estradas
ameaçadoras e vilarejos fantasmagóricos, sempre perdida entre sonho, realidade,
rituais perversos e canções de Roberto Carlos.
Um dos nomes do romance policial no
Brasil, o roteirista e escritor Tailor Diniz oferece “Em linha reta” (Editora
Grua, 128 páginas, R$ 30) um thriller com doses de literatura fantástica.
Como
vê a literatura policial no Brasil?
O momento é bom. São muitos autores
produzindo e publicando, alguns conhecidos e conceituados, outros pouco
conhecidos, em editoras menores, mas há uma perceptível efervescência no
mercado. Tanto que as grandes editoras brasileiras têm sua coleção dedicada ao
policial, Companhia das Letras, Record, Autêntica, L&PM, por exemplo. Isso
se deve também à internet e às redes sociais, Facebook especialmente, que
abrigam comunidades de autores e de leitores dedicados ao gênero, com
discussões e, importante, divulgação e compartilhamento de textos, de
lançamentos, resenhas e críticas.
Embora
haja um mercado para livros policiais no país (os lançamentos de autores
estrangeiros comprovam), vemos poucas publicações nacionais do gênero (ou
“subgênero”, como consideram alguns). Por que? O escritor brasileiro tem
preconceito com a literatura policial?
Não. Entendo que o problema não está com
o escritor. Os autores brasileiros estão aí, produzindo bastante. Há
preconceito, sim, em menor grau do que há 15, 20 anos, mas não de parte do
escritor. Até porque, não acho que seja tão comum assim um autor decidir sobre
em que gênero vai escrever, tipo: ah, literatura policial é um gênero menor!?
Então vou escrever autoajuda ou algo intimista...
Sobre o preconceito, existe em dois
âmbitos: de pessoas que realmente acham o policial um gênero inferior e, entre
os próprios aficionados, contra o autor brasileiro. Quando publiquei “Crime na
Feira do Livro”, por exemplo, saiu uma resenha bem positiva, num site
especializado em literatura policial, e, lá no final, o resenhista fazia uma
recomendação: o livro é de um autor brazuca, a história se passa em Porto Alegre,
vamos dar uma força pro cara. No primeiro comentário, alguém dizia: “Policial
brazuca, a história se passa em Porto Alegre? Xô, melhor, não!”
Por ironia, três anos depois, esse livro
foi traduzido para o alemão e lançado durante a Feira de Frankfurt, em 2013. A
história se passa durante a Feira do Livro de Porto Alegre, a ação começa com
um assassinato, no primeiro dia da Feira, no espaço da Feira, e termina no
último dia, com a descoberta do assassino. É um livro que poderia ser rotulado,
à primeira vista, como obra regional, rejeitada por aquele leitor que só
consome autores estrangeiros, mas que, considerando-se o olhar do editor alemão
(que publica pensando no leitor alemão), tem um valor literário de interesse
independente do lugar onde se desenvolve a ação e da nacionalidade do autor.
Para
um ficcionista brasileiro, é difícil rivalizar com uma realidade tão violenta e
absurda?
Se eu disser que sim, ou que essa seria a
causa de ainda não termos alcançado o nível de produção e receptividade dos
autores estrangeiros, estaria desconsiderando a gênese da literatura policial,
que começou na França, no final do século XIX e início do XX, num dos períodos
mais violentos do país. As execuções na guilhotina em praça pública eram
eventos concorridíssimos, as notícias de casos reais de assassinatos concorriam
com os folhetins publicados nos mesmos jornais, bandidos eram recrutados para
atuar como policiais sob o argumento de que só eles conheciam o submundo do
crime e, assim, estariam aptos a combatê-lo; grupos de anarquistas chamados
Apaches esfaqueavam turistas em plena rua, o pequeno Théâtre du Grand-Guignol,
em Montmartre, fazia representações tão horripilantes e violentas que as
pessoas saíam do recinto respingadas de sangue, o grande herói nacional da
ficção era um sujeito chamado Fantomas, que não era o mocinho, mas o bandido de
todos os folhetins do qual era protagonista — tudo isso poderia rivalizar com a
literatura policial, no entanto, foi nesse contexto que ela nasceu.
Cenário de corrupção também havia nos
Estados Unidos, durante a Lei Seca, um dos períodos de maior violência no país,
quando surgiram grandes nomes da literatura policial americana. Não acho,
portanto, que a violência e a corrupção possam ser uma espécie de concorrência
ou algo que iniba o consumo e a produção de literatura policial no Brasil.
Literatura
policial é só entretenimento ou dá para fazer algo mais?
Acho que, no final das contas, toda
literatura é de entretenimento. O que ocorre é que a literatura policial, pela
sua estrutura e apelo, é um gênero de fácil compreensão, detalhe que a tornou
popular ao longo dos anos em todo o mundo. Daí essa tentativa de rotulá-la como
de entretenimento, como se fosse menos importante por ser de fácil compreensão
e ser consumida indistintamente. A literatura policial, em especial a que
surgiu a partir de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, nos Estados Unidos, por
exemplo, não deixa de conter nos seus enredos críticas sociais e políticas
muito fortes. É difícil encontrar na literatura dita “maior” um livro que
aborde de forma tão rica temas como a amizade e a solidão, além de outras
questões de cunho social e político, como “O longo adeus”, de Raymond Chandler,
ambientado na Los Angeles do pós-Guerra. Na mesma linha, lembro-me dos romances
e contos de Walter Mosley, com seu personagem Sócrates Fortlow, um
ex-presidiário que sofre todo o tipo de preconceito social e racial na luta
para se reintegrar à sociedade e, dessa forma, apagar o passado de crimes que o
levara a passar vários anos na prisão. Para não ficarmos apenas nos
estrangeiros, quem conhece o inspetor Espinoza, de Alfredo Garcia-Roza, percebe
que seu personagem muitas vezes é uma espécie de oásis de caráter e retidão
perto de seus superiores e colegas de polícia, na delegacia onde trabalha. Não
vou dizer que a literatura policial faz menos ou faz mais, ela apenas cumpre
seu papel (e às vezes não) como qualquer outro gênero, de entreter e retratar
as agruras da sociedade, tanto sob o ponto de vista político, como social e
psicológico.
E
no caso de "Em linha reta"? Há uma ideia de falar da sociedade
brasileira através de um gênero bem específico?
Não considero “Em linha reta” um livro
100% policial, mas um livro que, ao longo de sua narrativa, contém ingredientes
da literatura policial, como o suspense e uma estrutura próxima do folhetim em
que, ao final de cada capítulo, é posta uma isca para o leitor seguir adiante
na leitura. Do início ao fim, o leitor é atraído para algo que pode acontecer,
como se a qualquer momento fosse surgir uma novidade capaz de explicar aquela
situação meio absurda que se apresenta, da personagem principal tendo a
impressão de estar mergulhando sem volta num espaço vazio e desconhecido, e de
extremo perigo. Mas isso não é resultado de algo planejado. É um estilo de narrar
que também tem muito a ver com minhas preferências como leitor. “Em linha
reta”, por exemplo, contrariando uma característica principal do gênero, não
tem um enredo, de pontas que se soltam e se encontram no final. É uma narrativa
linear.
Sob o ponto de vista de conteúdo, há,
sim, uma abordagem social e política. O que procuro retratar é um mundo no qual
estão corroídos os pilares que sustentariam uma sociedade justa e de direito —
a polícia, a justiça e aquelas instituições que, em vez de proteger o cidadão,
por força de um ser invisível, mas tirano e poderoso, acabam por subjugá-lo. E
com o suporte do fanatismo religioso que, a cada dia, ocupa mais espaço na
sociedade, na política e no poder, fato a sugerir que podemos ter pela frente,
num tempo não muito distante, um período de obscurantismo. Basta hoje ligarmos
a TV e o rádio e acompanharmos o noticiário político para perceber que o
fanatismo religioso está ocupando espaços e, na minha opinião, é uma ameaça
séria à liberdade.
Como
chegou ao personagem da prostituta? Como a questão do mercado do sexo é
abordada no livro?
Depois que publiquei “A superfície da
sombra”, meu livro anterior, em função da boa aceitação daquilo que se
propunha, de abordar questões de fronteira, até onde algo é aquilo que aparenta
e partir de quando passa a ser outra coisa, senti que poderia ir adiante no
tema. Como em “A superfície da sombra” o cenário geográfico servia de metáfora
para essas questões (a história se passa em duas cidades gêmeas na fronteira do
Brasil com o Uruguai, separadas apenas por uma avenida), imaginei que o livro
seguinte devia tratar a questão das fronteiras de uma forma mais subjetiva,
entre o delírio e o sonho, entre a máquina e o humano, entre o novo e o
arcaico. Como o personagem anterior era masculino, quis para o novo livro uma
personagem feminina. De alguém que mergulhasse num mundo estranho, desconhecido
e hostil. Daí surgiu a ideia de uma garota de programa, uma profissão propícia
a esses perigos.
Embora essa personagem seja apresentada
de forma clara e objetiva, não há uma abordagem direta da questão do mercado do
sexo. Ela tem o perfil de uma garota de programa real, verdadeira, é
universitária, jovem, atraente, vive dois mundos distintos, da mulher que faz
programas com quem paga e da garota de classe média que tem namorado, frequenta
shoppings, usa as redes sociais, posta selfies, come pizza com os pais e os
irmãos e vai para a balada com as amigas. Quando está com a família, ninguém
imagina que aquela seja a sua profissão, quando está atendendo um cliente, usa
um desses nomes que lembram atrizes famosas, mas sem revelar a identidade. Essa
é uma fronteira entre dois mundos que eu também quis abordar: até onde ela é
uma garota de programa e a partir de quando passa a ser uma garota família, que
se preocupa com o presente de aniversário do irmão caçula ou em avisar a mãe
que vai chegar mais tarde em casa para ela não se preocupar — e vice-versa. Mas
não há espaço para o aprofundamento da questão, ela é apresentada dessa forma
apenas como uma das engrenagens da narrativa.