JOHN BANVILLE
tradução CELSO MAURO PACIORNIK
ilustração LAURA TEIXEIRA
tradução CELSO MAURO PACIORNIK
ilustração LAURA TEIXEIRA
SOBRE O TEXTO O trecho aqui reproduzido faz parte do romance "Eclipse", do autor irlandês John Banville, que será lançado em julho pela Biblioteca Azul, selo da editora Globo. O livro, que apresenta Alexander Cleave, ator de teatro que abandona a carreira, compõe uma trilogia com "Luz Antiga" (2013) e "Sudário", que deve chegar ao Brasil no segundo semestre deste ano.
Eu
podia fazer grandes papéis, também; as pessoas, quando me avistavam na entrada
do palco, ficavam sempre espantadas de encontrar, no que elas chamam de vida
real, não o grandalhão desgrenhado e bamboleante que esperavam, mas a pessoa
esbelta, alinhada, com o andar felino de um bailarino. Eu havia trabalhado duro
naquilo, percebem, havia estudado homens corpulentos e compreendido que o que
os define não é musculatura sólida, ou vigor, ou força, mas uma vulnerabilidade
essencial. Os sujeitos pequenos são todos ímpeto e autoconfiança, ao passo que
os grandes, mesmo quando não parecem minimamente apresentáveis, passam uma
impressão atraente de confusão, de estar perdidos, de angústia, até. São menos
agressores que agredidos. Ninguém se move mais delicadamente que o gigante,
embora seja sempre ele a despencar do pé de feijão ou a ter o olho vazado por
uma estaca ardente. Tudo isso eu aprendi, aprendi a encenar. Foi um dos
segredos do meu sucesso, no palco e fora dele, que eu poderia atribuir ao
tamanho. E à imobilidade, uma qualidade de absoluta imobilidade mesmo no meio
da confusão, esse era outro dos meus truques. Era isto que os críticos tentavam
decifrar quando falavam de meu assombroso Iago ou do meu atormentado Ricardo
Corcunda. A fera à espreita é sempre mais sedutora do que a que salta.
Não
me passou despercebido o uso do tempo passado em tudo acima.
Ah,
o palco, o palco; vou sentir sua falta, eu sei. Aquelas velhas máximas sobre a
camaradagem da gente de teatro, é bom que se diga, são todas verdadeiras. Filhos
da noite, nós nos fazemos companhia contra a escuridão insidiosa encenando que
somos adultos. Não considero meus semelhantes particularmente adoráveis, apenas
preciso fazer parte de um elenco. Nós, atores, gostamos de nos queixar dos
tempos difíceis, das restrições nos repertórios provincianos, das instalações
caóticas e das turnês à beira-mar canceladas pela chuva, mas era justamente a
indigência daquele mundo espalhafatoso que eu secretamente amava. Quando olho
para trás, para minha carreira, que parece encerrada agora, o que lembro com
mais carinho é o aperto aconchegante de algum salão imundo no meio do nada
protegido da escuridão barrenta de uma noite de outono e cheirando a fumaça de
cigarro e a sobretudos molhados; em nossa caixa de luz, nós, os atores, nos
pavoneamos e declamamos, rindo e chorando, enquanto ali, na obscuridade
aveludada à nossa frente, aquela massa indistinta de múltiplos olhos se pendura
em cada palavra berrada, se agarra a cada gesto exagerado nosso. Neste canto do
país, quando éramos crianças, costumávamos dizer dos exibicionistas no
playground da escola que eles estavam apenas "se achando"; esse é um
hábito que nunca perdi; fiz do me achar o meu ganha-pão; na verdade, fiz uma
vida. Não é a realidade, eu sei, mas para mim era a segunda melhor coisa -por
vezes a única coisa- mais real que o real. Quando fugi desse mundo povoado não
havia ninguém além de mim para me impedir de me desgraçar. E me desgracei.
Atuar
foi inevitável. Desde cedo, a vida para mim foi um perpétuo estado de ser
observado. Mesmo quando estava sozinho, eu me comportava com velada
circunspeção, mantendo as aparências, encenando. Esta é a presunção do ator,
imaginar que o mundo possui um olho único e ávido fixo sempre e exclusivamente
nele. E ele, é claro, ao atuar, se acha a única coisa real, a sombra mais
substancial num mundo de sombras. Tenho uma lembrança particular -embora
lembrança não seja a palavra, o que estou pensando é vívido demais para ser uma
lembrança real- de estar parado na ruela que desce do lado da casa, num final
de manhã de primavera, quando era menino. O dia estava úmido e fresco como um
graveto descascado. Uma luz forte irrealmente clara repousa sobre tudo, até nas
árvores mais altas consigo discernir folhas individuais. Uma teia de aranha
pesada de orvalho cintila num arbusto. Pelo caminho aproxima-se coxeando uma
velha, encurvada quase até o chão, seu andar uma repetida e lenta oscilação
dolorida em torno do pivô de um quadril danificado. Eu a observei se aproximar.
É a pobre e inofensiva Peg, eu a vi muitas vezes perto da cidade. A cada passo
penoso, ela me atira um olhar de soslaio intenso, inquisitivo. Ela usa um xale,
um velho chapéu de palha e um par de botas de borracha cortadas toscamente nos
tornozelos. No braço, carrega um cesto. Quando se aproxima do nível em que
estou, ela para e me lança avidamente um olhar torto, com a língua à mostra, e
murmura algo que não consigo entender. Ela me mostra o cesto com cogumelos que
havia colhido nos campos e talvez os esteja oferecendo para me vender. Seus
olhos são de um azul baço, quase transparente, como os meus, agora. Ela espera
que eu fale, ofegando um pouco, e quando não digo nada, não ofereço nada, ela
suspira, balança a cabeça velha e retoma seu penoso coxear, conservando-se à
beira gramada. O que foi que tanto me afetou no momento? Terá sido o ar
acariciante, aquela luz vasta, a sensação das euforias da primavera que me
rodeavam? Seria a velha pedinte, sua materialidade insondável? Alguma coisa se
avolumou em mim, uma exultação indefinida. Uma multidão de vozes lutava em meu
interior para se expressar, pareceu-me uma multidão. Eu as proferiria, essa
seria a minha tarefa, sê-las, as sem voz! Assim nasceu o ator. Quatro décadas
depois, ele morreu no meio do último ato e cambaleou para fora do palco, em
suada ignomínia, justo quando a ação estava chegando ao clímax.
Fonte: Folha de São Paulo
Fonte: Folha de São Paulo
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