A época dessa entrevista em Novembro de 2013, George R.R. Martin esteve
em Sydney no Opera House, para comentar mais uma vez sobre As Crônicas de Gelo
e Fogo e aproveitou para dar algumas dicas para quem quer se aventurar pela
escrita de fantasia, baseado em sua própria experiência. Mesclamos isso a
algumas dicas tiradas da seção de perguntas frequentes do site oficial de Martin. Então abaixo seguem os doze mandamentos do Rei (olha a heresia) dos escritores de Fantasia da atualidade.
Ler e Escrever, sempre
Eu acho que, a coisa mais importante para qualquer aspirante a escritor, é ler. E não somente o tipo de coisa que você está tentando
escrever, pode ser fantasia, ficção cientifica, quadrinhos, qualquer tipo de
literatura. Você precisa ler de tudo. Leia a história, ficção histórica,
biografias, leia novelas de mistério, fantasia, ficção cientifica, horror, os
sucessos, literatura clássica, erótica, aventura, sátira. Cada escritor vai ter
algo para ensinar a você, seja bom ou ruim. (E sim, você pode aprender com
livros ruins também – o que não fazer).
E escrever. Escreva todos os dias, mesmo que seja uma
página ou duas. Quanto mais você escrever, melhor nisso você será. Mas não
escreva no meu universo, no de Tolkein, no universo Marvel, de Star
Trek ou em qualquer outro que você pegue emprestado. Cada escritor precisa
aprender a criar seus próprios personagens, mundos e configurações. Usar o
mundo de outro é o método preguiçoso. Se você não exercitar esses “músculos
literários”, você nunca vai desenvolvê-los.
Comece aos poucos
Dada a realidade do mercado de ficção cientifica e fantasia atual, eu sugiro
também que qualquer aspirante a escritor comece com histórias curtas, contos.
Hoje me dia eu vejo muitos escritores novos tentando começar de cara com uma
novela ou uma trilogia, ou até mesmo com uma série de nove livros. É como
começar a escalar de cara pelo Monte Everest. Histórias curtas vão ajuda-lo a
aprender seu ofício. Elas são o lugar certo para cometer os erros que todo
escritor iniciante vai cometer. E são ainda o melhor caminho para um escritor
iniciante aparecer, já que as revistas e coletâneas de contos estão sempre
procurando por contos de fantasia e ficção cientifica. Uma vez que você tiver
vendido esses contos por uns cinco anos, você terá construído seu nome e
editores irão começar a lhe perguntar sobre seu primeiro romance.
Não há problema em pegar “emprestado” da
História
Embora minha história seja
de fantasia, é fortemente baseada em história medieval real. A Guerra das
Rosas, que foi sobre os Yorks e os Lancaster ao invés dos Stark e dos
Lannister, foi uma das maiores influências. Mas eu gosto de misturar e combinar
e mover coisas ao redor. Como diz um famoso ditado, roubar de uma só fonte é
plágio, mas roubar de muitas fontes é pesquisa!
Não limite a sua imaginação
Eu sabia desde o começo que eu queria uma história grande e complexa. Antes
d’As Crônicas de Gelo e Fogo eu trabalhei na televisão por dez anos e sempre me
deparava com um script de uma cena comum que eu escrevia, mas me
diziam “George , isso é ótimo , mas é muito grande e caro, você precisa cortar
algumas coisas. Você tem 126 personagens e só temos orçamento para seis”.
Quando eu voltei para a literatura, de repente não havia limites: Eu poderia
escrever algo enorme, com todos os personagens que eu queria, com batalhas,
dragões e imensos detalhes. Claro, eu pensei que isso seria infilmável e que eu
nunca teria que me preocupar com Hollywood novamente. Mas isso é problema de
David Benioff e Dan Weiss agora [produtores de TV de Game of Thrones].
Escolha os seus personagens com ponto-de-vista
de forma a ampliar a narrativa
Minha história é
essencialmente sobre um mundo em guerra. Ela começa muito pequena, com todo
mundo no castelo de Winterfell, exceto Daenerys. É um foco muito apertado, e em
seguida, conforme os personagens se separaram, cada personagem encontra mais
pessoas e POVs adicionais entram em foco.
É como se você estivesse tentando fazer um romance da 2ª Guerra Mundial: você
vai pegar apenas um soldado comum? Bem, isso só cobriria o cenário europeu ,
não o Pacífico. Você faz de Hitler um personagem com ponto de vista para
mostrar o outro lado? E o lado japonês ou da Itália? Roosevelt, Mussolini,
Eisenhower – todos esses personagens têm um ponto de vista único que representa
algo enorme na 2ª Guerra Mundial.
Então, você pode ir a partir de uma estrutura de ponto de vista onisciente onde
você está contando isso do ponto de vista de Deus, que é uma técnica literária
bastante desatualizada, ou você tem um mosaico de pessoas que estão vendo uma
pequena parte da história cada um, e através deles você pode obter toda a imagem.
Esse é o caminho que eu escolhi usar.
Faça Pontos de Vista críveis
Em última análise, todos nós estamos sozinhos no universo – a única pessoa que
cada um de nós realmente conhece profundamente, somos nós mesmos. Obviamente,
eu nunca fui um anão ou uma princesa, então quando eu estou escrevendo esses
personagens eu tenho que tentar e conseguir entrar em sua pele e ver como seria
o mundo de sua posição. Nem sempre é fácil.
Uma parte disso pode ser conseguido falando com pessoas reais. Eu me
correspondia com um fã que era paraplégico quando eu estava escrevendo o
primeiro e o segundo livros. Ele me deu um monte de informações valiosas sobre
como escrever sobre Bran e como seria estar nessa situação.
Mas, ultimamente, eu acho que a humanidade que todos os meus personagens
compartilham é mais importante do que se são homens ou mulheres, princesas ou
camponeses, altos ou pequenos. Enquanto estas coisas certamente fazem
diferença, todos os tipos de seres humanos em todas as culturas ao longo da
história têm desejado sucesso, amor, uma certa dose de prosperidade, conseguir
comer e não ser morto. Estas são coisas muito básicas que motivam todas as
pessoas e tento manter isso em mente ao escrever qualquer personagem.
A Dor é uma ferramenta poderosa – mas não
exagere
Apresentar a dor é algo
difícil de fazer. Anos atrás eu escrevia para um programa de TV chamado A Bela e a Fera, estrelado por Ron Perlman e Linda
Hamilton. Linda deixou o show após a segunda temporada para seguir uma carreira
no cinema, por isso, decidimos retirar o personagem da história ao invés de
substituir a atriz, porque era mais dramático. Tivemos a personagem morta e
isso levou a uma grande briga com a rede [o canal].
Queríamos passar um episódio inteiro em que a personagem estaria enterrada e
todo mundo passaria 60 minutos chorando e lamentando e compartilhando suas
lembranças sobre ela. Mas a rede não queria que mostrássemos nada disso. Eles
disseram “o personagem está morto, você precisa seguir em frente e apresentar
uma nova Bela. Nunca mais vamos mencionar o nome de seu personagem
novamente”. Toda a sala de escritores ficou horrorizada com isso. Era para ser
uma história de amor pelas eras, ele não ia simplesmente esquecê-la e seguir
para a próxima Bela.
Nós meio que ganhamos a batalha, mas
perdemos a guerra. Apresentamos o episódio [como queríamos] e foi muito
poderoso. Acho que nossos fãs mais incondicionais assistiram, derramaram muitas
lágrimas e depois nunca mais assistiram a série de novo! A mágoa, o sofrimento,
não necessariamente se traduz em valor de entretenimento. Dito isto, faz mais
poderosa a narrativa. Apresentar não apenas a morte, mas a dor é importante. Em
algum momento, todos nós experimentamos a perda de nossos pais, ou irmão ou
amigos próximos e é uma emoção muito poderosa.
Violência deve ter consequências – então não
poupe ninguém!
Se você pretende escrever
sobre guerra no estilo medieval, você precisa mostrar isso – todas essas
espadas não são apenas para enfeite. Você deve apresentá-lo honestamente em
toda a sua feiura e horror. Batalhas medievais eram excepcionalmente
sangrentas, as pessoas basicamente acertavam umas as outras com pedaços
grandes, muito afiadas de metal que arrancavam membros e deixavam lesões
horríveis e devastadores. Na Batalha de Hastings há relatos contemporâneos de
um verdadeiro banho de sangue (estima-se que somando os dois
lados haviam 17000 soldados e fora os feridos teriam morrido cerca de 6.000,
tudo isso em uma manhã). Eu gosto de mostrar as consequências críveis da
guerra, como o homem aleijado, que viveu depois.
Curiosamente, na série, eles mataram uma
certo número de personagens menores que ainda estão vivos nos livros, como as
duas servas de Daenerys. Quando perguntei [aos produtores] sobre isso, eles me
explicaram que ao contrário dos meus personagens nos livros, os atores esperam
ser pagos em dinheiro! Portanto, a fim de introduzir um novo personagem no
início de cada temporada, eles têm que matar alguns dos antigos personagens
para ter folga [no orçamento].
Evite clichês de fantasia
Eu amo fantasia e tenho lido durante toda a minha vida, mas eu também sou muito
consciente de suas falhas. Uma das coisas que me deixa louco é a exteriorização
do mal, onde o mal vem do “Senhor das Trevas” que está sentado em seu palácio
escuro com seus asseclas sombrios onde todos se vestem de preto e são muito
feios. Eu deliberadamente brinquei com isso. Veja a Patrulha da Noite, eles
mesmos estão cheios de ladrões, saqueadores e estupradores, e são pessoas
heroicas – mas todos eles se vestem de preto. E depois há os Lannister que são
bonitos e justos, mas não são as pessoas mais simpáticas da história.
Na fantasia simplista, as guerras são
sempre plenamente justificadas – você tem as forças da luz que lutam contra uma
horda escura que querem espalhar o mal sobre a terra. Mas a história real é
mais complexa. Há uma grande cena em Henrique V de William
Shakespeare, em que Henrique vai andando entre os seus homens disfarçado na
véspera da batalha de Agincourt, e alguns deles estão questionando se a causa
do rei é justa ou não, e lamentando todas as pessoas que vão morrer para apoiar
a sua reivindicação. Essa é uma pergunta válida. Então você tem a Guerra dos
Cem Anos, que era basicamente uma briga entre famílias que mandou gerações
inteiras para o matadouro. Então, eu tento mostrar isso no que escrevo.
Criando personagens “cinza”
Personagens cinza [nem bons, nem maus] sempre me interessaram mais e eu acho
que o mundo está cheio deles. Eu li um monte de História, e eu não achei nenhum
personagem puramente heroico ou puramente mau. Você pode escolher os exemplos
mais extremos – Hitler era famoso por amar cães. Stalin, Mao, Genghis Khan, os
grandes assassinos em massa da história eram todos heroicos sob seus próprios
olhos. Por outro lado você pode ler histórias sobre todos os santos da história
católica e Madre Teresa ou Gandhi e você pode encontrar coisas e ações sobre
eles que eram erradas ou questionáveis , mas que eles
fizeram.
Somos todos cinza e eu acho que todos nós
temos a capacidade de fazer coisas heroicas e coisas muito egoístas. Eu acho
que compreender isso é a chave para você criar personagens que realmente têm
alguma profundidade neles. Mesmo quando eu estou escrevendo Theon Greyjoy, que
é alguém que muitas pessoas odeiam, eu tenho que tentar ver o mundo através de
seus olhos e dar sentido ao que ele faz.
Gerenciar muitos personagens requer habilidade
– e sorte
Eu às vezes me pergunto se será possível amarrar todos os fios soltos na minha
saga. Tenho pesadelos quando eu penso sobre tudo se juntando nos últimos dois
livros. Acho que posso fazer isso, mas vamos ver quando eu chegar ao fim. Às
vezes, esses personagens malditos tem uma mente própria e se recusam a fazer o
que eu quero que eles façam. Eu acho que nós vamos saber se tudo vai funcionar
em uma década mais ao menos!
Lembre-se: O inverno está chegando
Valar Morghulis – Todos os homens devem morrer. Eu
acho que a consciência de nossa própria mortalidade é algo que diz respeito
mais a arte e a literatura. Mas eu não acho que isso se traduz,
necessariamente, em uma visão de mundo pessimista. Assim como no mundo real,
meus personagens estão aqui apenas por um curto espaço de tempo. O importante é
o amor, a paixão, a empatia, o riso, até mesmo rir na cara da morte, se for
possível. Há trevas no mundo, mas não podemos dar lugar ao desespero. Um dos
melhores temas de O Senhor dos Anéis é que o desespero é o crime supremo. O
inverno está chegando, mas você pode acender as tochas e beber vinho e se
reunir ao redor do fogo e continuar a lutar por um bom combate.
Mas seja lá o que você fizer, no entanto…
Boa sorte. Você vai precisar.
E então? Está pronto para começar sua
própria saga? Interessante que “leve todo o tempo do mundo para escrever seu
livro” e “não se desespere se seus fãs não te deixarem em paz” não foram
citados como conselhos, mas a gente releva.