Era 1988 e Tooly Zylberberg tinha 9 anos
quando foi raptada por três estranhos em Bangcoc. Em 1999, ela vivia de
pequenos golpes em Nova York. Doze anos depois, Tooly é dona de uma livraria no
País de Gales e recebe uma mensagem informando que seu pai está morrendo nos
EUA. O segundo livro do escritor anglo-canadense Tom Rachman é um quebra-cabeça
da vida dessa jovem, que decide viver offline no limiar do século XX
para o XXI. “The rise & fall of the great powers” (“Ascensão & queda
das grandes potências”, em tradução livre) chega às livrarias inglesas quatro
anos após o primeiro romance de Rachman, “Os imperfeccionistas” (Record), que
colheu elogios ao narrar a vida de um grupo de jornalistas e que, agora, está
sendo adaptado para virar seriado da BBC. Tanto na história anterior quanto na
nova, que sai no Brasil em 2015, também pela Record, Rachman parte de uma trama
simples, mas recheada de questões contemporâneas, como direito a privacidade e
anonimato no mundo virtual.
Envolvido com a adaptação de “Os
imperfeccionistas” e já trabalhando num terceiro livro, Rachman falou ao GLOBO
em Londres. Ex-editor do “International Herald Tribune” e ex-repórter da
agência Associated Press, o autor, de 40 anos, falou da necessidade de se
desconectar para ser criativo e da onda nostálgica que ele acredita estar
assolando a Humanidade.
Você acha que ainda há muitas pessoas que
optam por ser tão desconectadas e distantes do mundo virtual como os
protagonistas do livro?
Elas só existem em livros (risos). Acho
que há pessoas optando por limitar o tempo que passam on-line, sim, buscando
formas de viver com o mínimo e ter períodos de completo afastamento do mundo
virtual. Mas algo tão radical é extremamente difícil para quem quer uma vida
normal. Na verdade, é muito difícil se livrar dessas coisas, mesmo que você
queira. Há várias indústrias bilionárias no mundo da tecnologia que vivem
exclusivamente para descobrir formas de satisfazer os interesses das pessoas.
Elas trabalham para que estejamos sempre checando alguma coisa. É obviamente
uma reação animal: você fica excitado a cada nova mensagem e está condicionado
a reagir dessa maneira. Progressivamente fica mais difícil se livrar dessa
realidade. Todo mundo está mais agitado e distraído, e é cada vez mais difícil
se concentrar. Sendo possível, acredito que é uma boa ideia controlar a
extensão com que deixamos nossas vidas se dissolverem na internet.
Um dos temas do livro é a relação dos
personagens com seus passados. Nossas escolhas e ações são registradas o tempo
todo na internet e por câmeras de seguranças nas ruas. Pode-se viver fora dessa
vigilância?
Até determinado ponto, sim. Deve ser uma
escolha feita de forma bastante consciente. Se uma pessoa não age para
controlar como as mídias digitais estão presentes em sua vida, ela pode ser
totalmente dominada. Pois elas são extremamente sedutoras. Afetam a gente da
mesma forma que o uísque afeta um alcoólatra. Se você sabe que possui essa
fraqueza, e todos nós possuímos, então não tenha muito uísque em casa. Não
estou sendo radical e recomendando cortar todas as ligações com a tecnologia.
Há várias coisas ótimas que compõem esse universo, mas acho que é melhor ter
algumas taças de vinho do que mandar uma garrafa inteira para dentro de uma vez
só.
A protagonista tem diferentes
perspectivas de sua vida e da História à medida que conhece pessoas. A internet
vai ajudar futuras gerações a ter uma perspectiva mais ampla da História?
Pense na Wikipédia, por exemplo. As
pessoas a usam como fonte básica de conteúdo. É apenas uma fonte, então você
pode pensar: “Bem, no futuro, todos vão concordar muito mais pois há uma
referência básica em comum”. Mas, até aqui, apesar de toda a onipresença da
mídia digital, tenho a impressão de que as pessoas não estão com opiniões mais
unificadas e compartilhando uma mesma percepção da História. Estamos mais
divididos. No momento, a internet concentra pontos de vista semelhantes em
pequenos grupos. Se você acredita que o homem nunca pisou na Lua e foi tudo
conspiração, você vai encontrar várias informações on-line comprovando que você
está certo. As pessoas tendem a preferir perspectivas que comprovem informações
nas quais já acreditam. E a internet é perfeita para isso. Mas as pessoas
também podem ter acesso a informações que vão permitir outro ponto de vista. É
difícil prever o que vai acontecer. No fim, talvez o problema seja que os
usuários são seres humanos, sempre falhos, apesar da evolução em suas
tecnologias.
A quantidade de informação que temos não
vai ajudar a esclarecer eventos como os que acontecem, por exemplo, na Faixa de
Gaza ou na Ucrânia?
Acho difícil. Mesmo as informações que
temos agora dão várias perspectivas. Se você olhar para o conflito entre Israel
e Palestina, ninguém concorda em relação ao que está acontecendo. Então,
imagine no futuro. É difícil esperar a existência de uma compreensão objetiva
de quem estava certo ou errado. A História sempre foi composta por dois lados.
De um, os fatos objetivos: o Holocausto aconteceu e o homem foi à Lua. Você
encontra evidências para eles. De outro, o lado moral da História, e as pessoas
geralmente estão em busca dele, das lições, de quem estava errado ou certo, dos
culpados, daqueles que precisam pagar e dos que devem ser beneficiados por ter
sofrido. Infelizmente, os motivos fazem com que as pessoas distorçam os fatos.
Os seres humanos são tão dispostos a manipular que acho difícil pensar que no
futuro será melhor. Temos registros filmados do avião acertando a segunda torre
do World Trade Center, e eu garanto para você que muita gente ainda acha aquilo
falso. Há quem acredite que os prédios não caíram e foi tudo uma invenção. Se
não acreditam hoje, imagina daqui a 50 anos.
O livro também fala da relação com o
presente. Como alguns personagens, tendemos a achar o passado melhor. A
tecnologia pode combater a nostalgia?
Mesmo antes desse período tecnológico que
vivemos, as pessoas sempre tiveram o passado como referência. Mas hoje há uma
obsessão com o retrô. Você vê pessoas com estojos de iPad semelhantes a fitas
cassete. Acredito que a nostalgia só tende a crescer, pois as mudanças estão
tão aceleradas que coisas novas logo parecerão antigas. Por isso acho que
haverá uma forma ainda mais intensa, afetuosa e apaixonada de nostalgia. Quanto
mais rápido mudarmos, mais nostalgia.
Personagens do livro falam que é melhor
viver como observador e não se envolver. Hoje há uma cobrança por
posicionamentos e opiniões?
Provavelmente sim, mas talvez no passado
apenas não houvesse tantos canais para as pessoas se expressarem. Quando tratamos
de egocentrismo, acho que é uma verdade fundamental que a maioria está
interessada apenas em si mesma. Acredito que estamos programados a agir dessa
forma pois, se não, vamos acabar morrendo. E hoje, pelo menos no Ocidente, a
crença na meritocracia nos permite acreditar que qualquer um pode ser
bem-sucedido. Isso é um mito, não é todo mundo que consegue ter sucesso, mas a
ideia persiste. E, para muitos, a solução é engrandecer a existência escrevendo
sobre ela no Facebook ou no Twitter. Ao mesmo tempo, acredito que, lá no
coração dessas pessoas, está claro que elas só tem 400 seguidores, enquanto
outras têm muito mais.
Seu primeiro livro foi sobre um jornal
impresso, e o segundo é sobre livros. Você está registrando a luta pela
sobrevivência da mídia impressa?
Sim, pensei nisso (risos). A lógica
cultural está mudando e dificultando a existência da mídia impressa. Jornais
ainda existem, jornalismo definitivamente continua a existir, e livros e
livrarias também. Mas o lugar deles na nossa cultura está mudando. Costumo
variar entre o otimismo e o pessimismo. Acho que os livros tendem a sobreviver
melhor, pois informações rápidas e triviais são consumidas de forma muito mais
rápida pela internet. Em um mundo tão acelerado, com atualizações constantes e
coisas apitando e piscando o tempo todo, você consegue se desligar? Talvez os
livros continuem importantes, pois nos farão desconectar. A indústria editorial
está em busca de formas de sobreviver digitalmente, e muitas entram em choque
com a essência do livro. Por exemplo, e-books com links apenas acabam com o
efeito que o livro possui. Não há nenhum outro exercício cultural que exija 25
ou mais horas de pura concentração e envolvimento, que demande tanto da sua
mente por um período tão longo. Música, filmes e outros podem afetar tanto ou
até mais, mas são experiências diferentes. Acho que a profundidade de atenção
exigida por um livro é muito significativo e uma alternativa a nosso modo de
vida. Mas não sei se isso torna a existência dos livros ainda mais ameaçada ou
uma esperança. Só nos resta torcer.
Você também está falando do livro como
objeto físico, certo?
Sim. Escrever, para mim, é o reflexo de
uma leitura, requer atenção prolongada. Quando escrevo, uso um programa chamado
Freedom, que corta a minha internet. Muitos escritores usam. Quando vocês está
entediado, a primeira coisa que faz é olhar e-mails ou notícias. Mas os
momentos mais criativos são quando você está no ponto de ônibus, sem celular,
apenas esperando. Ou quando está lavando a louça. Você processa as informações,
fica quase vazio, e as ideias chegam. Esse estado é o primeiro passo para
escrever algo interessante. Você ainda não tem uma história, mas está no
caminho, entre o tédio e a criatividade. Também é um processo estressante, pois
você se pressiona, questiona seu trabalho. É tentador abrir o e-mail, mas você
não pode, precisa continuar... Acho incrível a sensação quando ligo o Freedom.
O programa me pergunta quanto tempo quero. Geralmente coloco 180 minutos, e ele
pergunta: “Tem certeza?”. Sim. Então, experimento uma mudança quase
fisiológica: tudo fica mais sereno e me sinto aliviado. Aí produzo bastante, os
180 minutos passam, o programa me avisa, eu nem percebo e sigo trabalhando.
Consigo desligar e é maravilhoso.
Fonte: O Globo
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