Emília era muda e começou a falar. Ela
não tem coração — literalmente — e se casou por interesse, só porque queria ser
marquesa. Torce pelo Palmeiras, pesa cinco quilos, só teve um emprego na vida e
pratica bullying contra os moradores do Sítio do Picapau Amarelo. Sua dona,
Narizinho, a define assim: algodão por fora, asneira por dentro. Dona Benta,
mais doce, diz que ela é “uma fadinha” que anda pelo mundo fantasiada de boneca
de pano. Espevitada, tagarela, atrevida — politicamente incorreta, por vezes —,
a personagem de Monteiro Lobato (1882-1948) entrou para o imaginário brasileiro
a ponto de parecer ter vida própria. Tanta vida própria que acaba de ser
radiografada em um livro, “Emília — Uma biografia não autorizada da Marquesa de
Rabicó” (Casa da Palavra), no qual a cearense Socorro Acioli revê toda a obra
de Lobato para narrar a trajetória da personagem — mais agitada que a de muita
gente de carne e osso, diga-se.
— A minha dissertação de mestrado (na
Universidade Federal do Ceará) foi sobre a leitura na obra de Monteiro Lobato.
Aí resolvi incluir um capítulo que fosse uma biografia da Emília, e para isso
reli todos os livros dele marcando as passagens com ela — conta Socorro, que
suprimiu os trechos mais acadêmicos para publicar o livro, reunindo aventuras e
curiosidades sobre a boneca.
Por exemplo: Emília tem data e local de
nascimento — e esse lugar não é o Sítio do Picapau Amarelo, onde ela foi
confeccionada por Tia Nastácia. A boneca nasceu da pena de Monteiro Lobato em
São Paulo, na Rua Boa Vista 52, em algum dia de 1920. É o ano de escritura de
“A menina do narizinho arrebitado”, que depois Lobato lançaria com o título
“Reinações de Narizinho”. Nasceu muda, como os leitores sabem, e só disse a
primeira frase — “Que gosto horrível de sapo na boca!” — depois de tomar uma
pílula falante no Reino das Águas Claras. Não parou de falar nunca mais.
Às vezes, falou até demais. Não à toa, é
ela o pivô das acusações de racismo que seu criador tem sofrido ao longo dos
anos, ao chamar Tia Nastácia de “beiçuda” e “macaca de carvão”, entre outras
ofensas. Mas a “biografia” não fala desse lado B de Emília. E Socorro Acioli se
justifica:
— Quis focar o trabalho na análise de
construção de personagem. Lobato conseguiu o máximo com Emília em 24 livros, é
uma aula para qualquer escritor ou roteirista — afirma a autora. — Não faço de
conta que isso (o racismo) não existe, mas não quis tratar de questões
laterais. E há um momento em que Emília diz que criticar Tia Nastácia é como
criticar a ela mesma. Considero isso uma metáfora do que nós brasileiros somos.
Monteiro Lobato, nas cartas pesquisadas
por Socorro Acioli, contava ter perdido o “controle” sobre a personagem. “Ela
me entra nos dois dedos que batem as teclas e diz o que quer, não o que eu
quero. Cada vez mais Emília é o que quer ser, e não o que eu quero que ela
seja. Fez de mim um ‘aparelho’, como se diz em linguagem espírita”, escreveu o
autor, em 1943, ao amigo Godofredo Rangel.
A pesquisa de Socorro questiona
pormenores que não chamariam a atenção do leitor mais desatento. Já percebeu
que Emília nunca pegou doença de gente? A explicação é dada pela própria
boneca: “Eu sou de pano e as doenças não penetram o meu corpo. Sabe por quê?
Porque o pano é uma peneirinha que coa a doença...”. Com seus olhos feitos de
retrós, ela vê melhor do que qualquer pessoa do Sítio e se diz capaz de achar
uma pulga na Ursa Maior. Boneca de pano come? Tem horas em que ela diz que não
— e sente inveja dos humanos —, mas isso não a impede de comer croquetes no
Reino das Águas Claras.
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