sexta-feira, 13 de junho de 2014

Leia trecho de "Eclipse", novo romance de John Banville

JOHN BANVILLE
tradução CELSO MAURO PACIORNIK
ilustração
 LAURA TEIXEIRA

SOBRE O TEXTO O trecho aqui reproduzido faz parte do romance "Eclipse", do autor irlandês John Banville, que será lançado em julho pela Biblioteca Azul, selo da editora Globo. O livro, que apresenta Alexander Cleave, ator de teatro que abandona a carreira, compõe uma trilogia com "Luz Antiga" (2013) e "Sudário", que deve chegar ao Brasil no segundo semestre deste ano.


Eu podia fazer grandes papéis, também; as pessoas, quando me avistavam na entrada do palco, ficavam sempre espantadas de encontrar, no que elas chamam de vida real, não o grandalhão desgrenhado e bamboleante que esperavam, mas a pessoa esbelta, alinhada, com o andar felino de um bailarino. Eu havia trabalhado duro naquilo, percebem, havia estudado homens corpulentos e compreendido que o que os define não é musculatura sólida, ou vigor, ou força, mas uma vulnerabilidade essencial. Os sujeitos pequenos são todos ímpeto e autoconfiança, ao passo que os grandes, mesmo quando não parecem minimamente apresentáveis, passam uma impressão atraente de confusão, de estar perdidos, de angústia, até. São menos agressores que agredidos. Ninguém se move mais delicadamente que o gigante, embora seja sempre ele a despencar do pé de feijão ou a ter o olho vazado por uma estaca ardente. Tudo isso eu aprendi, aprendi a encenar. Foi um dos segredos do meu sucesso, no palco e fora dele, que eu poderia atribuir ao tamanho. E à imobilidade, uma qualidade de absoluta imobilidade mesmo no meio da confusão, esse era outro dos meus truques. Era isto que os críticos tentavam decifrar quando falavam de meu assombroso Iago ou do meu atormentado Ricardo Corcunda. A fera à espreita é sempre mais sedutora do que a que salta.

Não me passou despercebido o uso do tempo passado em tudo acima.

Ah, o palco, o palco; vou sentir sua falta, eu sei. Aquelas velhas máximas sobre a camaradagem da gente de teatro, é bom que se diga, são todas verdadeiras. Filhos da noite, nós nos fazemos companhia contra a escuridão insidiosa encenando que somos adultos. Não considero meus semelhantes particularmente adoráveis, apenas preciso fazer parte de um elenco. Nós, atores, gostamos de nos queixar dos tempos difíceis, das restrições nos repertórios provincianos, das instalações caóticas e das turnês à beira-mar canceladas pela chuva, mas era justamente a indigência daquele mundo espalhafatoso que eu secretamente amava. Quando olho para trás, para minha carreira, que parece encerrada agora, o que lembro com mais carinho é o aperto aconchegante de algum salão imundo no meio do nada protegido da escuridão barrenta de uma noite de outono e cheirando a fumaça de cigarro e a sobretudos molhados; em nossa caixa de luz, nós, os atores, nos pavoneamos e declamamos, rindo e chorando, enquanto ali, na obscuridade aveludada à nossa frente, aquela massa indistinta de múltiplos olhos se pendura em cada palavra berrada, se agarra a cada gesto exagerado nosso. Neste canto do país, quando éramos crianças, costumávamos dizer dos exibicionistas no playground da escola que eles estavam apenas "se achando"; esse é um hábito que nunca perdi; fiz do me achar o meu ganha-pão; na verdade, fiz uma vida. Não é a realidade, eu sei, mas para mim era a segunda melhor coisa -por vezes a única coisa- mais real que o real. Quando fugi desse mundo povoado não havia ninguém além de mim para me impedir de me desgraçar. E me desgracei.


Atuar foi inevitável. Desde cedo, a vida para mim foi um perpétuo estado de ser observado. Mesmo quando estava sozinho, eu me comportava com velada circunspeção, mantendo as aparências, encenando. Esta é a presunção do ator, imaginar que o mundo possui um olho único e ávido fixo sempre e exclusivamente nele. E ele, é claro, ao atuar, se acha a única coisa real, a sombra mais substancial num mundo de sombras. Tenho uma lembrança particular -embora lembrança não seja a palavra, o que estou pensando é vívido demais para ser uma lembrança real- de estar parado na ruela que desce do lado da casa, num final de manhã de primavera, quando era menino. O dia estava úmido e fresco como um graveto descascado. Uma luz forte irrealmente clara repousa sobre tudo, até nas árvores mais altas consigo discernir folhas individuais. Uma teia de aranha pesada de orvalho cintila num arbusto. Pelo caminho aproxima-se coxeando uma velha, encurvada quase até o chão, seu andar uma repetida e lenta oscilação dolorida em torno do pivô de um quadril danificado. Eu a observei se aproximar. É a pobre e inofensiva Peg, eu a vi muitas vezes perto da cidade. A cada passo penoso, ela me atira um olhar de soslaio intenso, inquisitivo. Ela usa um xale, um velho chapéu de palha e um par de botas de borracha cortadas toscamente nos tornozelos. No braço, carrega um cesto. Quando se aproxima do nível em que estou, ela para e me lança avidamente um olhar torto, com a língua à mostra, e murmura algo que não consigo entender. Ela me mostra o cesto com cogumelos que havia colhido nos campos e talvez os esteja oferecendo para me vender. Seus olhos são de um azul baço, quase transparente, como os meus, agora. Ela espera que eu fale, ofegando um pouco, e quando não digo nada, não ofereço nada, ela suspira, balança a cabeça velha e retoma seu penoso coxear, conservando-se à beira gramada. O que foi que tanto me afetou no momento? Terá sido o ar acariciante, aquela luz vasta, a sensação das euforias da primavera que me rodeavam? Seria a velha pedinte, sua materialidade insondável? Alguma coisa se avolumou em mim, uma exultação indefinida. Uma multidão de vozes lutava em meu interior para se expressar, pareceu-me uma multidão. Eu as proferiria, essa seria a minha tarefa, sê-las, as sem voz! Assim nasceu o ator. Quatro décadas depois, ele morreu no meio do último ato e cambaleou para fora do palco, em suada ignomínia, justo quando a ação estava chegando ao clímax.

Fonte: Folha de São Paulo

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